Neoliberalismo, parabólicas e tropicalidades

Por fredericopellachin , colunista do site do Canal Viva
Em 1994, o termo “Terceiro Mundo” ainda servia para demarcar a posição do Brasil no cenário geopolítico mundial. A queda do Muro de Berlim e o posterior colapso da União Soviética intensificaram um surto neoliberal que já vinha sendo tramado durante os governos conservadores de Ronald Reagan (EUA) e Margareth Thatcher (Inglaterra) nos anos 80. Para não perder o bonde do “fim da história” e para abafar as constantes crises econômicas, o Brasil driblou a depressão e foi se tratar. Só assim mesmo pra “entrar na linha” e virar “emergente”.
Esse tipo de terapia, conhecida como “choque de capitalismo”, teve início no governo de Fernando Collor (1990 – 1992) e se acentuou na transição dos governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1994. Aberta aos fluxos financeiros transnacionais e “recém-curada” da longa ferida inflacionária, a economia brasileira entrou de cabeça no jogo do mercado globalizado, graças ao Plano Real. A “nova ordem” passou a seguir obstinadamente a cartilha do neoliberalismo, por meio de ações que colocariam fim aos monopólios das empresas estatais e ampliariam a participação do setor privado na produção e na infraestrutura, o que já se revelava nos esquemas “pós-coloniais” desuperacumulação e superexploração, capitaneados pelas nações que compunham o chamado“Primeiro Mundo”. A estabilidade monetária e a recuperação da confiança da população sinalizavam que o tal “tratamento de choque” estava surtindo efeito.


Fernando Henrique e Itamar Franco – “choque de capitalismo” no Brasil de 1994 (Foto: André Dusek / Agência Estado)

Uma pequena digressão aqui só para apontar o crescente impacto tecnológico nos lares brasileiros nesta época, quando observarmos a quantidade de parabólicas que brotavam nos telhados de norte a sul do país. Um aparato simbólico que refletia a nossa inserção na tal “aldeia global”, quando o must eram os“Cd-Roms” e a internet ainda engatinhava.


Mar de antenas no Brasil dos anos 90 – “a cidade não pára, a cidade só cresce” (Foto: Oscar Cabral / Abril Imagens)

E foi nesse período de intensas transformações que a novela das seis “Tropicaliente” foi ao ar na TV Globo pela primeira vez. Ao fugir do eixo Rio-São Paulo, o autor Walther Negrão misturou o velhoembate de classes que caracteriza todo e qualquer bom folhetim com as visões de um Ceará paradisíaco, moderno e “antenado”. Alguns reagiram, afirmando que tudo não passava de propaganda para a bem-sucedida administração do então governador tucano Ciro Gomes no estado nordestino.


“Sol, Mar e Ciro” – visões de um paraíso neoliberal (Foto: reprodução)

Mais ou menos no meio da novela, o governador cearense entregou o cargo ao seu vice, para assumir o Ministério da Economia. Tudo por causa do chamado “escândalo das parabólicas”, que tirou do ar o seu antecessor, Rubens Ricupero, revelando, “via satélite”, toda aquela moral inescrupulosa que insiste em orientar o caráter nacional, de cima para baixo, por todos os lados. Licencinha aqui para um rápido flash-back.
Ricupero assumiu o posto máximo da economia quando Fernando Henrique decidiu se candidatar à presidência, alguns meses antes da estreia de “Tropicaliente” e do Plano Real. Foi contagiado pelo espírito da nova moeda, que chegaria “chegando” para por ordem no pardieiro. Logo em setembro, com a novela a todo vapor e a inflação sob custódia, o ministro foi pego “falando demais”, num encontro informal com o jornalista Carlos Monforte da TV Globo, momentos antes de conceder entrevista “com link ao vivo e via satélite” para todo o país. O que ele não imaginava era que o sinal de transmissão estava sendo “testado” e poderia ser captado por antenas parabólicas que estivessem sintonizadas na mesma frequência com que a Embratel gerava imagens de Brasília para a TV Globo em São Paulo.
Se hoje, muitos vídeos “vazam” pela internet, em 1994 imagens eram vazadas pelos “gatos” das parabólicas, que porventura sintonizavam a mesma frequência desta ou daquela transmissão. E foi o que aconteceu. A conversa “informal” fora captada por terceiros e Rubens Ricupero caiu, em queda livre, rumo ao abismo. Em um destes diálogos “pirateados”, o ministro confidenciara ao repórter: “eu não tenho escrúpulos, o que é bom a gente fatura, o que é ruim, a gente esconde”, entre outras confissões bombásticas. Estava selado o destino do governador do Ceará como o novo Minsitro da Fazenda.


O jornalista Carlos Monforte e o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero – “prenda minha parabólica” (Foto: reprodução)

Em meio a tanto arranca-rabo político, o Nordeste vivia uma efervescência musical, com a ascensão de uma nova ordem do pop-rock nacionalChico Science despontava como o líder de uma safra de bandas que colocava o manguebeat no topo das paradas. Ritmos folclóricos como o coco, a embolada e o maracatu foram resgatados e retrabalhados de forma experimental. Além disso, ganharam uminvólucro pop “envenenado”, em sintonia com as novas tecnologias.


Capa do primeiro álbum do grupo pernambucano Chico Science & Nação Zumbi, lançado pela Sony Music em 1994.

Um dos hits desta boa nova veio carregado de riffs de guitarra vertiginosos, em compasso com uma espécie de fanfarra percussiva. “A Praieira” obteve projeção nacional ao entrar na compilação que marcou a trilha sonora nacional de “Tropicaliente”, a novela que unia o “mundo primitivo” dos pescadores com a “civilização progressista e modernosa” do Ceará neoliberal-tucano.
O mais curioso de tudo isso: o emblemático símbolo do manifesto dos mangueboys era uma parabólica enterrada na lama


Chico Science em 1994 – sopro de renovação no pop-rock nacional (Foto: reprodução)

Vou te cantar mantras e boleros agora, sob a lua pan-americana:


Temos aí uma Paloma Duarte sensualizando em meio a um fundo tosco-geométrico-tropical. A trilha sonora nacional de “Tropicaliente” foi lançada também em CD, indicando que a transição analógico-digital já estava em curso, embora o “exercício” da troca de lados do “discão” ainda prevalecesse.
Depois do manguebeatElba Ramalho é a grande estrela deste álbum. “Coração da gente”(composição de Nando Cordel) batizou a novela graças ao seu refrão pegajoso e funciona muito bem ao ilustrar o estudo “semiótico-gestaltiano-kitsch” de Hans Donner, que criou uma abertura graciosa e até que bem-acabada (assista aqui!). Nela, o designer austríaco mergulha no título da trama para anunciar o conceito de “mulher-fruta” e transforma o sol em cocktail, a salada “gourmet” em ilha selvagem e a dança ao luar em um suculento prato de lagosta. A civilização em comunhão com a natureza. Enquanto isso, o som apontava o caminho de Elba nos anos 90, que passou a seguir o itinerário “é só misturando pra ver no que vai dar”. Nesta nova rota global, pegaram carona a salsa e os ritmos afrodisíacos. Mistura de Ceará com o Caribe. Curiosamente, Elba (junto com Dominguinhos) foram importantes porta-vozes da campanha tucana em 1994.


Elba Ramalho embala o ritmo na abertura de “Tropicaliente” – natureza x civilização (Foto: reprodução)

Mais alguns nomes da música contemporânea nordestina somaram forças na trama ensolarada deWalther Negrão. O lambadeiro Beto Barbosa (“Meu Amor Não Vá Embora”) e o axé-boy do momentoNetinho (“Menina”) fugiram dos estilos que os consagraram, enveredando-se por uma linha mais romântica. O primeiro emprestou sua voz à composição da dupla Paulo Debétio e Paulinho Rezende, responsáveis pelo super hit “Nuvem de Lágrimas”, que tocou nos quatro cantos do país durante a novela“Barriga de Aluguel” (1990/91). “Meu Amor Não Vá Embora” é o tema do então estreante Márcio Garcia, o Cassiano, primogênito do líder dos pescadores.
Já Netinho, interpretou um grande sucesso de Paulinho Nogueira de 1970. A canção “Menina” já tinha sido gravada pelo ator Cláudio Cavalcanti para o seu par na clássica novela de Janete Clair“Irmãos Coragem”. Era o tema da Índia Potira, célebre personagem da atriz Lúcia Alves. “Menina” fez um grande sucesso na época e virou objeto de disputa entre as gravadoras Philips e RGE, conforme expliqueiaqui. Em 1994, a canção voltou modernizada para ser o tema de Amanda, personagem de Paloma Duarte na novela das seis. Na seara mais dançante da trilha, o grupo de forró Flor de Cheiro dá o tom espevitado para a Dalila de Carla Marins. O sucesso foi tanto que a trupe forrozeira gravou até um vídeo-clipe nas locações da novela.
O repertório mais tradicional da música do Nordeste também está muito bem amarrado aqui. O nosso grande cantor do mar, Dorival Caymmi, embala num tom sublime os dramas do pescador Ramiro(melhor papel de Herson Capri em novelas). “O Bem do Mar” é um grande destaque do disco. As“mulheres de Ramiro” ganharam temas similares, preservando um certo lamento a la Caymmi. Djavan compôs e interpretou “Sim ou Não” para a urbana Letícia (Silvia Pfeifer) e o carioca Jorge Vercilo (“Praia Nua”) valoriza e muito os sofrimentos de Serena, brilhante momento na carreira da saudosa atriz Regina Dourado.
Outro destaque da trilha nacional de “Tropicaliente” é o tema da ótima Natália Lage e sua personagem Adrenalina, que faz parte do bem desenvolvido núcleo jovem da trama. O grupo Cidade Negra ilustrou as suas desventuras com o reggae-pop “Pensamento”, fisgado do excelente álbum“Sobre todas as forças”, que marca a entrada de Toni Garrido na banda. “A Praieria”, já citada acima, foi tema do Pessoa, parceiro de Adrenalina nas loucuras juvenis, interpretado pelo também ótimo Guga Coelho. E mais um personagem que se destacou na novela foi o Franchico de Cássio Gabus Mendes, um galanteador barato e malandro trambiqueiro. Ninguém melhor do que Jorge Benjor para dar um fulgor extra aos histrionismos do rapaz. “Princesa” saiu do seu álbum “23″ direto para a trilha da novela das seis.
Enquanto isso, nosso rei Roberto Carlos continuava a investir nos arranjos bregas para dar forma aos seus cânticos chorosos. “Tanta Solidão”, composição dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, é o tema de Açucena, personagem de uma promissora Carolina Dieckmann. E o ator-galã da hora, Maurício Mattar, parecia seguir a cartilha da nossa majestade com a exagerada “Muito Romântico”, tema do François de Victor Fasano.




Disponível em: http://canalviva.globo.com/especial-blog/na-trilha-das-novelas/post/neoliberalismo-parabolicas-e-tropicalidades.html, acessado em 6 mar.2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Seu comentário será submetido à moderação. Não são permitidos linguagem vulgar ou desrespeitosa, assuntos que fogem à temática do blog, propagandas ou textos em caixa alta.